A perturbadora história original de "O Quebra-Nozes": Porque esse já foi o balé mais apavorante do mundo


De padrinhos pedófilos a ratos horríveis de sete cabeças, as primeiras versões do balé classico eram... diferentes

Tendo dançado "O Quebra-Nozes" de setembro a dezembro por 11 anos em vários papéis, acho que é difícil lembrar a primeira vez que ouvi os acordes de Tchaikovsky. Mas que claro que ele foi ouvido uma primeira vez, uma semana antes do Natal em 1892, pela plateia lotada do Teatro Mariinsky em São Petersburgo, Rússia. O agora amado e talvez excessivamente familiar balé estreou esse ano.

Dependendo de quem você perguntar, os críticos variam de morno para francamente hostis em seus comentários. A coreografia foi categorizada como "confusa" em algumas cenas, o libreto foi considerado "torto" e o criítico enviado pela Gazeta de São Petersburgo chamou o espetáculo de "a coisa mais entediante que eu já vi". Quando a revolução estourou alguns anos mais tarde, o teatro parou de apresentar o balé completo e muitos bailarinos perderam seus empregos. Como, então, com um começo tão desfavortável, "O Quebra-Nozes" se tornou o balé mais apresentado de todos os tempos e uma tradição de fim de ano, mesmo entre as pessoas de fora do balé?

O conto de fadas de 1816 de E.T.A. Hoffmann, em que o balé é baseado, é preocupante: Marie, uma jovem menina, se apaixona por um boneco quebra-nozes, a quem só vê ganhar vida quando adormece. Em uma horrível batalha entre o príncipe quebra-nozes e o rei rato de sete cabeças, Marie cai, aparentemente em um sonho febril, em um armário de vidro e corta o seu braço profundamente. Ela ouve histórias de trapaça, mentiras, uma mãe roedora vingar a morte de seus filhos e um personagem que nunca deve adormecer (mas é claro que adormece, com consequências desastrosas). Enquanto ela cura sua ferida, o rei rato faz lavagem cerebral nela em seu sono. Sua família a proíbe de continuar falando sobre os seus "sonhos", mas quando ela jura amar um feio quebra-nozes, ele ganha vida e ela se casa com ele. Os dois deixam a vida real para sempre para viver no reino da boneca. Marie é um espectro de um personagem, uma menina que só existe para cuidar de seu príncipe imaginado, uma garota que desaparece, sem poder e subjugada, a um reino governado por bonecas.

O Quebra-Nozes (Imperial Mariinsky Theatre, St. Petersburg, 1892)

Uma lenda diz que mais tarde, em 1844, Alexandre Dumas (de "Os Três Mosqueteiros" e "O Conde de Monte Cristo") adaptou a história original para um público mais jovem. Em uma festa de férias a que sua filha tinha sido convidada, um bando de crianças amarraram Dumas a uma cadeira e exigiram uma história de improviso. Ele escreveu a mesma história para uma publicação e a versão de "O Quebra-Nozes" que a maioria do público está familiarizado hoje em dia nasceu do "L'histoire d'un casse noisette" de Dumas.

Quase 50 anos depois, o diretor do Teatro Imperial da Rússia contratou Peter Ilyich Tchaikovsky e Marius Petipa, o mestre do balé, para colaborar em um novo espetáculo baseado na história francesa que ele havia lido. Tchaikovsky aceitou a oferta para escrever a trilha sonora hoje tão famosa, mas apenas se ele também pudesse trabalhar em sua ópera "lolanta", que estreou na mesma noite. Ele teria escrito a música para o Grand Pas de Deux em uma aposta (seu amigo apostou que ele não conseguiria escrever uma música baseada nas notas da oitava em sequência). O mestre Petipa adoeceu durante o período de ensaios e o trabalho coreográfico virou responsabilidade de seu assistente.

Por causa da anterior parceria tão bem sucedida entre Tchaikovsky e Petipa em "A Bela Adormecida", os ingressos para "O Quebra-Nozes" esgotaram na noite de 18 de dezembro de 1892. As reações ao balé foram as mais variadas. O próprio czar ficou encantado com o desempenho dos bailarinos; no entanto, ele foi considerado tolo pelos críticos e público - muito infantil para adultos, sem nenhuma ligação clara entre o primeiro e segundo atos. A música foi declarada "muito sinfônica" e até mesmo o irmão de Tchaikovsky criticou a fada açucarada original, Antoinette dell'Era, chamando-a de "rechonchuda" e "corpulenta".

Escute a trilha sonora completa de "O Quebra-Nozes":

Alguns anos após o fracasso da performance de abertura, em 1905, início da Revolução Russa, os bailarinos do Teatro Mariinsky em grande parte fugiram da Rússia. O príncipe original de "O Quebra-Nozes", Sergei Legat, se desentendeu com autoridades e cortou sua garganta. O balé e seus bailarinos foram praticamente esquecidos. Quando eles foram obrigados a se espalhar por toda a Europa, eles introduziram muito da alta cultura da Rússia para o Ocidente, incluindo o balé "O Quebra-Nozes". Em 1927, ele foi apresentado em Budapeste. Em 1934, ele foi apresentado em Londres e 10 anos depois o San Francisco Ballet encenou sua própria versão, com base na coreografia inicial.

Walt Disney usou a trilha sonora de Tchaikovsky completa em "Fantasia" em 1940. Com o tratamento da Disney, a música se tornou instantaneamente reconhecida entre o público americano e hoje mantém a rara distinção de ser a música clássica do Natal que não tem nada a ver com o cristianismo.

Mas demorou até 1954 para que "O Quebra-Nozes" realmente capturasse o público americano. Com sua nova companhia, a New York City Ballet, o pioneiro George Balanchine ressuscitou o balé que ele tinha aprendido como estudante do Teatro Mariinsky quando jovem: "O Quebra-Nozes". Ele usou a história original e sua formação técnica russa, mas apelou para a imaginação de seu público com suas ideias revolucionárias sobre a arte. Ele manteve, por exemplo, que deveria haver o mesmo número de bailarinos negros e brancos no palco - algo que o mundo da dança contemporânea ainda tenta conciliar.

Michael Arshansky, Paul Nickel e Alberta Grant na versão de 1954, feita por George Balanchine.

"O Quebra-Nozes" continua a ser, para a maioria das companhias, uma necessidade - um espetáculo que sempre atrai uma multidão e mantém as luzes acesas - embora as produções de hoje tenham, talvez, muitos componentes questionáveis como a estreia de 1892. A versão da Pacific Northwest Ballet inclui o pedófilo padrinho Drosselmeyer, que dá o boneco quebra-nozes de Marie e faz beicinho quando ela se apaixona pelo boneco, e não por ele. Mesmo a mais famosa produção televisiva, que estrelou Mikhail Baryshnikov e Gelsey Kirkland, teve drama por trás das cenas. Kirkland detalhou seu vício em drogas e transtornos alimentares graves, bem como sua relação tempestuosa com Baryshnikov, em seu livro "Dancing on My Grave".

O que explica a extraordinária popularidade de "O Quebra-Nozes"? O balé adorado retrata crianças, é para crianças e faz uso de crianças, proporcionando a vitrine ideal para as escolas de balé. Há um papel para todas as faixas etárias, desde os pequenos até os profissionais que fazem personagens como a Fada Açucarada. O clima de Natal encoraja a crença na magia contra toda a razão; Papai Noel consegue passar pelo espaço da chaminé e a menina se apaixona por um boneco que ganha vida. O balé, que sempre é apresentado no período natalino, propaga cada mensagem ocidental sobre a época festiva com uma trilha sonora que mesmo aqueles que nunca viram o espetáculo sabem cantarolar. "O Quebra-Nozes" nos assegura que não precisamos de um Papai Noel para uma festa de Natal mágica.

Cena do espetáculo apresentada pelo New York City Ballet

Até hoje, mais pessoas viram "O Quebra-Nozes" e mais companhias já o apresentaram do que qualquer outro balé. A maioria dos bailarinos - eu incluída - passam suas carreiras indo e voltando para essa produção, muitas vezes com alterações coreográficas mínimas de ano para ano. Balanchine sugeriu outros coreográfos para manter o balé fresco, mas as audiências decidiram em grande parte que o desempenho mais tradicional veio para ficar. "O Quebra-Nozes" superou seu fracasso inicial por meio da revolução, deserção e adoção. Apesar das persistentes mensagens sobre cassação feminina, a sua música é amada e o tema da magia do Natal proporciona uma fuga do tédio na temporada de férias comercial, garantindo a "O Quebra-Nozes" um lugar no panteão da arte ocidental.

Matéria traduzida do inglês "“The Nutcracker’s” disturbing origin story: Why this was once the world’s creepiest ballet". Leia o artigo original aqui.
Confira algumas fotos de "O Quebra-Nozes" apresentado por diversas companhias pelo mundo:















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